RAÇÃO DE GATO
Ainda é madrugada e a rotina é a mesma: lá vem Elvira, minha gatinha, para me acordar. A intenção principal da felina é o desjejum. Ela gosta de tomar café bem cedo, na aurora. Sem ferir, mas sabendo incomodar sob medida, puxa barba e puxa cabelo de seu dono até fazê-lo levantar-se.
Elvira não come carnes, nem embutidos. Ao contrário do que ocorreu com seu dono, não foi recomendação médica. Desde que desmamou nunca mais tomou leite e acostumou-se simplesmente com a ração. Sua comida favorita não é de nenhuma dessas marcas gourmet para pets. Ração comum, simples assim.
A quantidade deve ser bem pensada. Colocar de menos, deixa o gato com fome e tal maldade não se comete. Colocar de mais também prejudica: o gato não come tudo de uma vez e a ração perde sua crocância, vai ficando xoxa, passa do ponto. Poisé, os felinos percebem essas coisas todas.
Acompanhando-me há três anos, Elvira tem lá suas manias e já as conheço todas. Raramente ela toma alguma atitude cuja intenção eu não perceba na hora. De uns tempos para cá, porém, começou a ficar mais exigente na hora da refeição. Agora ela faz questão que se misture na ração aquela mistura de carne com molho, vendida em sachês.
Está bem, façamos a vontade do miau. Lá vai o dono, em meio às tarefas do dia, misturar ração com molho de carne para deleite da felina. Entretanto, há vezes que Elvira parece passar do ponto. Sabe aqueles dias em que a pessoa só pensa em comer? É assim, excetuando-se o fato de que Elvira não é pessoa, é bicho. Ou ente, se preferirem, de acordo com o jargão filosófico.
Certo dia, ela estava i-m-p-o-s-s-í-v-e-l. Com um apetite aparentemente absurda, pedia ração toda hora. Comecei a me impacientar. Como insistisse, resolvi radicalizar: peguei um sachê inteiro de molho de carne e misturei em dois pratinhos de ração. Elvira fez a festa! Como é grande a delícia do objetivo alcançado!
Por alguns instantes fiquei ali, parado, observando a alegria da felina matando sua vontade. E comecei a dar risada, derrotado pela inocência e fofura do animal de estimação. Então me dei conta de que coisa parecida acontece conosco, quando Deus nos permite alcançar uma graça que não esperamos ou que verdadeiramente sequer merecemos.
O Pai, que cuida de nós com muito mais carinho do que alguém toma conta de um animal, também nos observa. Deus, que nos conhece melhor do que nós mesmos, tem os ouvidos sempre atentos aos nossos clamores. Diante de uma graça alcançada, se é grande a alegria da criatura, quanto mais a do Criador!
Em preces e testemunhos, agradeçamos ao Senhor que nos presenteia cotidianamente com muito mais que a ração diária! Um Pai tão amoroso que nos faz perceber o seu amor infinito por nós até mesmo numa tarefa banal como dar ração para um gato.
Amém! Miau!
(Pe. Sala é jornalista e escritor, professor e teólogo, membro da Academia Ituana de Letras)