PÓS-MORTE DOS SUPREMINIONS
Morre um(a) sinistro... Ops! Quer dizer, um "ministro" do Supremo. Como estamos num exercício de especulação teológica, poderia ser uma sinistra... Ops! Quer dizer, uma "ministra" também. Vale o que mais agradar a "todes".
Encerrada sua porca vida neste vale de lágrimas chamado Terra, o(a) ministro(a) fecha de vez seus olhos para este mundo. Quando os reabre, encontra-se já em outro plano. Curiosamente, ou melhor, coerentemente, vê-se logo num tribunal.
Está, porém, em lugar estranho. Não ocupa a presidência do lugar. Está, isso sim, em pé, onde costumam ficar os réus. Acima da grande bancada de madeira, maciça e imponente, não vê crucifixo algum. "Oba! Aqui o Estado é laico, graças a Deus!", pensa com entusiasmo. Entretanto, repara que sobre o balcão não consta o famoso martelo, aquele em que se pede ordem no tribunal.
O recém-defunto escuta o ranger de portas. Alguém entra, com imponência: é São Miguel Arcanjo, com a espada na bainha e a balança da Justiça numa das mãos. Ao contrário do que acontece por aqui, onde nos mandam ficar em pé, diz: "Todos de joelhos no tribunal!". O réu fresco se ajoelha. Enquanto olha para trás e para os lados, toma conhecimento da sua platéia: as almas de todas as pessoas contra quem cometeu injustiças.
Suando por perceber que não terá recurso, o(a) ministro(a) afinal entende a razão de não haver no tribunal um crucifixo: quem entra para ocupar a cadeira do juízo, de coroa na cabeça e cetro na mão, é o próprio Jesus Cristo. O Nazareno toma seu assento. Com o cetro no lugar do martelo, diz: "Que comece o julgamento!".
São Gabriel Arcanjo é o encarregado de informar as acusações: "O réu é acusado de: usar a Justiça para cometer injustiças; perseguir a Igreja; desprezar o Cristo; menosprezar o povo; combater a Fé; agir como servo de Satanás servindo à maldade, à corrupção e à mentira". O Filho de Maria pergunta: "Estás ciente das acusações. Como se declara o réu?". Tremendo de pavor, o(a) ministro(a) responde: "Inocente! Sou inocente! Claro que sou inocente!".
Então a palavra é dada a Lúcifer, que se esforça e capricha no desenvolver das acusações. Aproximando-se do réu, com seu bafo de enxofre, ele diz: "Inocente??? Hahahahahahaha!!! Isso é tudo o que você não é, meu caro! Você, eu e cada grão de areia, sabemos disso! És culpado, muuuuito culpado. Os frutos da tua vida terrena afirmam isso. Não há como negar! Na Terra você enganou, enrolou e escapou de muitos... Aqui? Nana-nina-não!".
O desespero do réu-ministro ficou patente quando olhou para um canto do tribunal e viu, nada mais, nada menos, que oitocentos diabinhos estenógrafos, tomando detalhadas notas de cada acusação feita pelo Demônio. E eram mesmo muitas! Pensou ter um alívio quando o Nazareno disse: "Seja dada a palavra às testemunhas de defesa!". Porém, ouviu um silêncio ensurdecedor. Olhou para os lados, para cima e para baixo: nada, ninguém, nenhuma vivalma. Até mesmo o silêncio dos grilos, do vento e dos pensamentos, faltava no lugar. Se escutasse a própria consciência, perceberia que até esta o acusava.
Entendeu, enfim, sua desgraça: ninguém a lhe defender diante do Tribunal Divino. Numa última jogada, dissimulou um par de lágrimas, voltando-se à Nossa Senhora. A Santa Mãe de Deus olhou para o réu, olhou para o Filho, voltou a olhar para o réu e saiu, balançando a cabeça em desaprovação a tamanha cara-de-pau da parte de alguém que nunca, em vida, demonstrou a mínima devoção.
Revoltado, o réu enfim tomou coragem (ou seria apenas reflexo do desespero de um condenado?) e bradou: "Justiça! Sou inocente! Quero Justiça!". Jesus de Nazaré levantou-se, bateu com o cetro na tribuna e disse: "Ordem! Ordem no Tribunal!". E prosseguiu:
"Queres a justiça que praticaste no mundo dos homens? Aquela que colocava uma venda na Verdade para tentar fazê-la cega? Queres aquilo que chamava de justiça mas que, na Verdade, era apenas o tecer de arranjos e o armar de maracutaias contra o povo e os valores sagrados? É essa a justiça pela qual clamas aqui? Aquela justiça que um dia condenou a Mim, o Justo dos Justos? Aquela justiça que me crucificou e que me fez morrer?".
O réu, petrificado, continuava a ouvir sua sentença:
"Aqui não há lugar para Herodes e Pilatos, tampouco para Barrabás! Aqui termina a pretensa 'justiça' dos homens. Aqui acabam toda mentira e corrupção. Aqui o que impera é a Justiça, que sou Eu mesmo, a encarnação ressuscitada e viva da Justiça de Deus! Por muito tempo te fizestes um pequeno deus diante de seus semelhantes. Mas aqui, agora, acaba o teu reinado de injustiça. Não te condeno, nem te absolvo. Colherás os frutos do que plantaste: colhe a maldade, colhe a maldição; colhe a injustiça, colhe a condenação. E o pior castigo, a pior sentença, conhece e sofre agora: tu mesmo recebes de volta toda a perversidade da qual foste responsável. O culpado da tua condenação? Tu, somente tu".
Ouvida a sentença, o réu não esboça reação: só frieza. Não chora, pois é incapaz de sentir piedade até de si mesmo. No fundo, ele sabe que não dá para enganar a Verdade. Ele sabe que é culpado. Orgulhosamente, levanta-se. Coloca para frente as mãos juntas, aguardando as algemas de Belzebu. Os demônios o cercam, rindo de satisfação. Aberta uma fenda flamejante no chão, o réu é engolido rumo às trevas e ao castigo eterno, aquele que não aceita prescrição, segunda, terceira ou quarta instância, nem juiz de garantias, nem apelação, nem compadrio corporativo.
Na platéia, não há comemorações. As boas almas não se alegram com a condenação de ninguém, por pior que seja. Apenas assistem, resilientes, o resultado. É realmente uma pena a incapacidade de tantas pessoas para uma sincera conversão. É triste ver gente que ri e que cospe na cara de Deus, mesmo sabendo que o prêmio disso será entregar a alma ao diabo em pessoa.
Em tempo: este é apenas um texto de ficção ou de especulação teológica. Qualquer semelhança com a atual realidade é mera coincidência proposital.
Será?
Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça. Quem avisa, amigo é.
Amém.
(Pe. Sala é jornalista e escritor, professor e teólogo, membro da Academia Ituana de Letras)