NEFARIOUS
Se você está lendo esta crítica é porque assistiu a Nefarious. Se ainda não, faça-o logo. Trata-se do filme mais sincero e objetivo a respeito da ação do demônio no mundo moderno. Houve um tempo na história humana em que o diabo podia ser explícito em suas ações. Com o passar das eras, aprendeu que o anonimato funcionava melhor. Passou a ser muito mais sutil, tal qual um agente secreto.
No corpo de um perturbado detento, o demônio dá um jeito de aprontar das suas. Tal qual o soldado numa guerra, sua missão é destruir o inimigo um por um. No caso, o inimigo somos nós, os seres humanos, feitos à imagem e semelhança de Deus, obras-primas da Criação e por isso tão amados por Deus. Não importa que o demônio presidiário esteja encarcerado. Mesmo dali ele atira e faz vítimas.
Ao conseguir o suicídio de seu antigo psiquiatra, Nefarious consegue outro. É claro que o tentará destruir. O filme tem uma hora e meia. Os primeiros trinta minutos dedicam-se às apresentações. O personagem principal diz quem é e nesse início não há como ter certeza se aquele homem é louco ou possesso. Não há um show diabólico, nada que impressione. São apenas palavras, tiques e trejeitos.
A coisa começa a ficar estranha quando o presidiário revela algum tipo de poder de adivinhação. A eutanásia da própria mãe é o primeiro assassinato de James. O demônio, como sempre, é desonesto. Eis a vida: o passado é do diabo, o presente é nosso, o futuro a Deus pertence. Nefarious diz que o psiquiatra vai cometer três assassinatos, mas habilmente começa a jogar com o passado dele. Engenheiro de obra pronta. Assim, fica mais fácil. Não deixa de ser verdade e o primeiro impacto é justamente esse.
O primeiro ato termina com uma lâmpada explodindo e esse é o máximo de fenômeno físico sobrenatural que teremos. Pode ser até uma coincidência, mas sabemos que no universo da Fé isso não existe, tudo tem propósito. Embora comece a impressionar, a primeira parte do filme não resolve o mistério. Ao contrário, faz nossas dúvidas aumentarem. Quanto mais assistimos, menos resolvido está o caso.
O filme, aliás, comete uma imprudência. Em se tratando do Maligno, a regra de ouro é: se você não está bem preparado, jamais sente para conversar com o diabo. Mas é justamente o que James faz. Por força de ofício, mas faz. Aceitar o diálogo com Satanás já é pedir um pouco para ser confundido por ele. Um cristão sabe que é sempre melhor gastar o tempo falando com Deus do que conversando com o demônio.
Dica dada, é necessário entender que sem esse diálogo o filme não seria possível. E fica uma nota de congratulação para o excepcional roteiro, muitíssimo bem construído, que não deixa pontas soltas e não contém erros teológicos. O diabo, ora vejam!, é sempre muito sincero. Não tem medo de expor a verdade sobre suas maldades e revela em pormenores o seu modus operandi atual na sociedade modernista-ateísta.
A partir da segunda parte o sobrenatural se aprofunda, com Nefarious adivinhando que James fez sua ficante abortar um filho não desejado. Atenção para a melhor cena do filme, quando o demônio praticamente tem um orgasmo com o sacrifício do bebê. O diabo entra em êxtase quando uma alma inocente é violentada pelo egoísmo humano. É só então que James percebe a barbaridade que incentivou. Um telefonema desesperado é a tentativa de interromper o aborto, porém é tarde demais.
É assim que James comete seu segundo assassinato. E para nós fica a dúvida: como diabos o detento adivinhou tudo isso? Aí é que está a graça do filme: a gente não sabe, mas desconfia. Só que, para dar cabo da nossa desconfiança, é preciso aceitar a premissa de que ali está mesmo um servo de Satanás e não um detento esquizofrênico. Haja ceticismo!
Com uma hora de filme somos contemplados com um discurso cada vez mais sincero e coeso da parte de Nefarious, que vai explicando em detalhes como Lúcifer convenceu a humanidade a trabalhar com ele. Tudo o que parece bom na humanidade atual, toda a agenda globalista e politicamente correta, tem origem no inferno. Vemos James deixando a ciência de lado e sendo controlado, convencido pelo demônio.
As pausas para fumar e os diálogos com o diretor do presídio servem para incrementar o roteiro com boas doses de conformismo. "Aqui é assim mesmo", diz o chefe da prisão. "Toda vez é assim, esses caras não são humanos. Alguns merecem a morte, mas este aí com certeza"... Etc e tal. Nada como exaltar a maldade para justificá-la, relativizá-la e dizer que, no fim, ela não existe de verdade.
Para muitos, o diabo não existe. O que existe é a maldade dos seres humanos. Mas nessa premissa falta o olhar espiritual. Somos maus, sim, mas por causa da influência do diabo. Quando nos inclinamos para o mal, Satanás é o primeiro a nos ajudar. Ele é a origem e a fonte de todo o mal. Foi Lúcifer quem inventou o pecado, o inferno e a condenação. E ele faz de tudo para nos convencer que a culpa é nossa, quando é dele. Não justifica levarmos uma vida de pecado para colocar tudo na conta de Satanás. Quando pecamos, infelizmente, fazemos parceria e sociedade com ele.
Na boca do demônio está o desrespeito pelo que é sagrado. Chama a Deus de "inimigo" e ao Cristo Redentor de "carpinteiro". Há muita teologia envolvida, mas em resumo podemos confirmar o que Nefarious confessou: a Encarnação do Verbo, o Filho de Deus, atrapalhou todos os planos de Satanás. O mestre da enganação foi enganado pela humildade de um Deus que se fez humano e que morreu em sacrifício por nós. Isto é algo completamente inimaginável para um ser tão egoísta e hediondo como Lúcifer.
Há um ponto, porém, que é necessário ser entendido do ponto de vista do personagem. Nefarious narra a traição de Lúcifer e a queda dos anjos maus do seu próprio ponto de vista. Chama Deus de egoísta e vê o livre-arbítrio como algo ruim porque assim o interessa dizer. Não faz menção de como foram confrontados, derrotados e humilhados por São Miguel Arcanjo e os anjos bons, que os expulsaram do Céu. Derrota boa é derrota camuflada, certo? Para entender em plenitude, seriam necessárias algumas aulinhas de Angeologia, Demonologia e Escatologia.
A terceira e última meia hora do filme nos apresenta um James entregue. Seu ceticismo foi pra lixeira. É um personagem completamente diferente do início: frágil, duvidoso, incapaz. Tem medo de condenar o detento, mas quer destruir o demônio na cadeira elétrica. Mal sabe que, fazendo isso, estará libertando o demônio e sem condicional. James começa a negociar com o diabo: é seu grande segundo erro.
Quando se trata de Satanás, não há diálogo, não há acordo, não há concessões. Nunca vimos Cristo, os Apóstolos ou os santos e santas da Igreja confabulando e fazendo tratativas com o diabo. Quem pensa que pode negociar com o Príncipe deste mundo, está imerso na arrogância ou na ignorância. Quem sabe mesmo o nível de esperteza e maldade de Lúcifer, sai correndo. Melhor um santo covarde que uma alma corajosa no inferno.
Neste último ato temos a pior cena do filme, por ser muito inverossímil. É quando o detento quebra o pulso e os dedos (velho truque clichê) para escapar das algemas e faz James de refém, sufocando-o em cima da mesa de metal. A passividade dos guardas é mesmo de ficção. Nos presídios essa situação realmente "non ecziste", como diria o saudoso Padre Quevedo. Mas, vá lá, damos um crédito: é pra dar um pouco de adrenalina.
Outra cena meio forçada é quando "descobrem" na cela do detento um livro datilografado e um diário com minuciosas informações sobre James, desde a infância até os dias atuais. Digo "forçada" porque, nessa altura do campeonato, já não adianta tentar nos convencer, ou ao James, de que Nefarious não existe. Trata-se de mais um elemento complicador, para causar confusão. Porém, aceitem ou não, já estamos convencidos a respeito da verdade sobre o demônio que possui o presidiário.
Traumatizado por todo o ocorrido e após ser quase sufocado, James finalmente assina a ordem de execução. Lá fora, os trovões cantam e pensamos que a tempestade terá alguma função. Não tem. É só pra compor a cena mesmo. Na mesma linha vão o diálogo com o carcereiro sobre a última refeição e com o barbeiro (cabeleireiro não é coisa de presídio), que termina dizendo: "Ninguém vai sentir a sua falta".
Não é um filme de terror e sim um thriller psicológico com uma premissa sobrenatural. Mas isso não quer dizer que ficaremos isentos de um pequeno susto. É quando o detento escapa dos guardas, abre a cortina e faz careta aos que estão na sala de execução para assistir sua morte. Quando é amarrado e fritado na cadeira, pensamos que finalmente veremos algum poder demoníaco em ação. Nada. Ufa, que bom!
A última tentativa de Nefarious é I-M-P-R-E-S-S-I-O-N-A-N-T-E!
Já na cadeira elétrica, pergunta a James: "Você vai me servir ou não?". O psiquiatra responde negativamente com a cabeça. Porém, terminada a execução, escuta o demônio a invadir sua mente. Pela vida que levou, pelas coisas que acreditou, pelo mal que preferiu, James já tinha aberto sua alma ao diabo em um nível razoável e por isso foi momentaneamente possuído, tentando o suicídio. A ação divina vem no miraculoso não disparar de três tiros, que ninguém entendeu, já que a arma não estava travada.
No desfecho vemos um James recuperado, embora envelhecido e com um ar sofrido, próprio de quem sobreviveu a uma luta com Satanás. É chato assistir sua entrevistinha com aquele protótipo de apresentador de talk-show, tipicamente woke e desdenhando de tudo, na arrogância típica dos "iluminados". Mas é necessário, pois nos mostra James dando o seu testemunho diante do mundo.
A mensagem aí implícita é tocante, verdadeira e libertadora: mesmo que Satanás tente nos obrigar, pois somos fracos por causa dos nossos pecados, cada um de nós tem na alma o poder de escolher dizer "NÃO" na cara do diabo e optar livremente a viver conforme a vontade de Deus. Todos podemos ser ajudados pelo Pai a escrever uma história diferente, de verdadeira libertação da alma e de negação ao diabo. É isso o que James faz, tomando por base o manuscrito de Nefarious para escrever algo diferente e positivo, que sirva de alerta e para a conversão de muitos. Bravo! James venceu!
Na última cena temos um outro clichê, perdoável por causa da ótima qualidade da trama desde o início. Ao ajudar uma moradora de rua, esta se apresenta como a nova possuída por Nefarious. Só se assusta quem quiser e fica a pergunta: seria o gancho para um "Nefarious 2 – O Retorno"?
A esta altura, você já deve ter percebido e se perguntado: nenhuma palavra sobre a cena em que Nefarious interage com o padre do presídio? Poisé... Deixei por último justamente porque me diz respeito diretamente. Enquanto sacerdote, assisti essa parte sob uma ótica muito particular e não sei se todos entenderão o que vou exprimir a partir daqui.
Há uma distinção que muitos esquecem de fazer: o diabo é criatura. Lúcifer não se compara e muito menos se iguala a Deus, em nenhum grau, nível ou poder. Satanás pode ser o mais astuto dos anjos criados, mas seu ponto fraco é justamente o seu orgulho, a sua arrogância. O Mal pelo qual vive é o seu grande veneno. Porém, Deus é mais. Sempre. É por isso que Nefarious fica inicialmente aterrorizado quando vê um sacerdote entrar em sua cela.
Nós, os padres, pobres criaturas de carne e osso, somos escolhidos por Deus e ungidos pela Igreja de Cristo para sermos outros Cristos. Um padre continua humano em seu CPF, pessoa física. Mas a partir de sua ordenação sacerdotal, quando recebe o Sacramento da Ordem, tem sua alma marcada em caráter indelével (nunca alterável ou apagável). A partir do momento de sua ordenação, a alma do homem se une ao sacerdócio de Cristo, de modo que ganhamos uma espécie de CNPJ. Enquanto homens, somos suscetíveis ao pecado. Enquanto padres, realizamos o sagrado na vida das pessoas.
Não significa que levemos uma vida dupla ou dúbia. Significa apenas um mistério: Cristo deu aos homens, os seus sacerdotes, o poder de perdoar pecados, limpar almas, converter pessoas, pregar a Palavra, lutar contra os demônios, realizar curas e milagres, etc. Cristo quis, Cristo fez. É assim há mais de dois mil anos. Por isso o medo de Nefarious. Ele sabe que está entrando na cela alguém que pode dar conta dele. Acontece que...
O padre em questão, chamado por James para averiguar o caso de possessão, é do estilo "moderninho". Como sabemos? Em primeiro lugar, não está de batina. Está bem, o padre pelo menos usa o clérgiman, aquela camisa clerical que tem um distintivo na gola. Porém, o que se destaca é um xale, um cachecol colorido, com as cores do arco-íris, nitidamente imitando uma estola, que é o paramento próprio dos padres.
Com duas ou três perguntas, Nefarious percebe que não tem o que temer. Diante dele está um ser humano, ungido sacerdote, que acredita mais no que é humano do que no que é divino. Um padre que não acredita em inferno. Um padre que não acredita em demônios. Um padre que pensa ser o exorcismo um rito xamânico do passado. Um padre pecador, e até aí nada de mais, pois todos somos pecadores. Mas um padre que não acredita nos males do pecado.
Seria um padre da Teologia da Libertação (TL)? Não há como saber. Sabemos é que os hereges adeptos da TL pregam justamente essas coisas: "O inferno não existe e se existe, está vazio"; "Um dia o diabo vai se arrepender e Deus o vai perdoar"; "Deus existe, perdoa tudo, o importante é você ser feliz"; "Essa coisa de castigo, fogo e ranger de dentes, é de uma teologia ultrapassada, coisa de tradicionalistas", etc.
Quando Nefarious percebe o padre mequetrefe que tem diante de si, relaxa. Tira sarro da cara dele. Oferece a mão em cumprimento e se dá ao luxo até de lhe oferecer um sustinho. Trágico! É um padre que ajuda Satanás, mesmo sem perceber. Um idiota útil que pertence ao clero. O filme deixa transparecer a crise existente na Igreja Católica. Quem é de dentro sabe do que estou falando. Quem não é de dentro, por favor, entre e com reta intenção: estamos precisando de ajuda e de mais militantes pela verdadeira Fé!
Não era a intenção do filme, e destruiria o enredo, se James chamasse àquela cela um padre verdadeiramente consciente da sua função. Já pensou, Nefarious diante de um Padre Paulo Ricardo ou de um Padre Leonardo? De um Padre Vander ou de um Padre Múcio? De um Padre Vila Verde ou de um Padre Overland? De um Padre Enéas ou de um Padre Anderson Ricardo? De um Dom Adair ou de um Dom Henrique? De um Cardeal Sarah ou de um Cardeal Burke? Ah, a história seria bem outra... Nefarious seria derrotado no segundo ato, mas daí não teríamos filme!
Nefarious revela, com inteligência, um pouco da batalha espiritual que vivemos atualmente. Quem pensa que a guerra da Ucrânia é coisa grande, não sabe de nada. Enorme é a batalha de Satanás contra os filhos e filhas de Deus que pretendem ser fiéis a Cristo. Para o diabo, a cruz pode ter sido um grande erro. Para nós, ela continua sendo o grande acerto.
Assisti ao filme duas vezes. Na primeira comendo pipoca, por diversão e curiosidade. Na segunda de caneta na mão, rezando e pensando. É o melhor filme do ano. É o melhor filme sobre ação demoníaca da história. Sem enfeites, sem salamaleques. O diabo é discreto, sutil, silencioso como uma cobra. Não é à toa que o filme não chegou aos cinemas do Brasil ou aos streamings. Perguntei para Jesus o que ele achou. Respondeu-me: "Quem tiver olhos para assistir, assista".
Amém.
(Pe. Sala é jornalista e escritor, professor e teólogo, membro da Academia Ituana de Letras)